Triste Fim de Policarpo Quaresma
"A loucura se reveste de várias e infinitas formas; é possível que os estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificação;. mas ao leigo ela se apresenta como as árvores, arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de coisas diferentes."
Considerado um dos fundadores da literatura negra ou afro-brasileira, a escrita crítica de Lima Barreto (1881-1922) é marcada pelos percalços de sua própria trajetória de vida.
Homem não branco, neto de mulher escravizada, órfão de mãe em tenra idade, teve que lidar com o processo de sofrimento psíquico do pai e, em seguida, com o enclausuramento de sua própria internação manicomial, pelos efeitos de degradação do alcoolismo.
Ao escrever preserva-se e serve-se da loucura. Recria sua vida em uma ficção, acrescenta-lhe personagens, emprestando-lhe cores e vozes que acreditava não possuir.
Precursor do modernismo, lembra-nos de que uma literatura contemplativa, plástica e romântica não é suficiente para os nossos tempos, "não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante".
Citando-o, "releio sua célebre obra, porque aos dezoito anos fiz uma leitura dela apressada e salteada". Revisitar Triste fim de Policarmo Quaresma e Cemitério dos Vivos, depois de conhecer o seu Diário do Hospício, proporciona outra experiência literária.
"O hospício! É assim como uma sepultura em vida, um semienterramento, enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem".
Sua obra dá mostras do quanto a loucura, a morte, a moléstia e o crime nivelam os homens que a sociedade, por critérios tortuosos e arbitrários, distingue e estratifica. Os muros e sepulturas construídas em torno deles são apenas artifícios para ludibriar a (des)humanidade que nos aproxima.
"Havia ali, naquele mudo laboratório de decomposições, solicitações incompreensíveis, repulsões, simpatias e antipatias; havia túmulos arrogantes, vaidosos, orgulhosos, humildes, alegres e tristes; e de muito, ressumava o esforço, um esforço extraordinário, para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ele traz às condições e às fortunas."
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Escute as feras
"Creio que, ainda crianças, herdamos territórios que nos será preciso conquistar ao longo de toda a vida"
Entre pausas necessárias, finalizei a leitura de Escute as Feras, com a constatação de que marquei muitas páginas desse pequeno livro. Ao mesmo tempo, dei-me conta de, em verdade, ter sido marcada pela densidade contida nas poucas páginas de um grande livro, de Nastassaja Martin (2019), antropóloga de naturalidade francesa, mas des-naturalizada pelas imersões em outros mundos.
Os empuxos que a desacomodam para fora de si, transformados em ofício, convertem os dados de uma experiência antropológica, ou de quase morte, em uma bela narrativa sobre as fronteiras in-habitáveis entre a vida humana urbana e a floresta selvagem.
"Para viver o cotidiano na floresta, o imperativo é a fluidez dos papéis; o movimento incessante de uns e outros, seu nomadismo diário implica que é preciso poder fazer de tudo a qualquer momento, pois a sobrevivência concreta depende das capacidades compartilhadas quando um membro da família se ausenta"
Nesse percurso, Nástia, depara-se com um modo não ocidentalizado de se relacionar com os seres, elementos e fenômenos da natureza. Há um certo estranhamento, e também recusa, aos enquadramentos e interpretações redutoras, sejam elas míticas ou científicas, que tentam apreender, delimitar ou definir numericamente o traumático de uma experiência indizível, qual seja:
"Na curva do caminho", o inesperado encontro com um urso, com a angústia de uma existência inapreensível de um outro ser vivente, do qual ela só pode capturar fragmentos de si, ali espelhados, no olhar da fera.
A psicóloga disse-lhe, em outras palavras, de modo técnico e menos poético, aquilo que Fernando Pessoa já havia enunciado antes dos psicanalistas: "A alma de outrem é outro universo com que não há comunicação possível, com que não há verdadeiro entendimento. Nada sabemos da alma, senão da nossa; as dos outros são olhares, são gestos, são palavras, com a suposição de qualquer semelhança, no fundo".
Os evens, habitantes daquele lugar, por outro lado, apontavam-lhe haver uma comunicação possível com os seres viventes da floresta: não se pode olhar nos olhos de um urso, pois ali ele reconhece sua insuportável parcela de humanidade. Assim como Rubem Alves, eles apontam para uma linguagem sensível, de um mundo indecifrado pelos códigos e teorias acadêmicas, aponta para "os céus e as matas que se enchem de cantos de sabiás... Lá [onde] as redes dos cientistas ficam sempre vazias".
"Aqui é sempre assim, nada nunca acontece como se deseja, a coisa resiste. Penso em todas as vezes em que o tiro não dispara, em que o peixe não morde, em que as renas não avançam, em que a moto de neve engasga. É igual para todo mundo. Você tenta ter estilo, mas tropeça, se atola, claudica, cai, se levanta... só mesmo os humanos acreditam que fazem tudo certo... dão tamanha importância ao que os outros pensam deles. Viver na floresta é um pouco isso: ser um vivente em meio a tantos outros, oscilar com eles."
Após diversos tratamentos, que tentam lhe restituir a face alterada, perdida, Nástia, retorna à floresta, longe das prescrições e diagnósticos, longe dos conhecidos olhares apiedados que não lhe permitem enxergar nada além do que já está posto. Busca despir-se dos sentidos ofertados, sem renunciar ao desejo de compreender aquilo ultrapassa a obviedade do acontecimento. Busca algo similar ao refúgio uterino perdido ao nascer: reconstruir uma pele, contenção, que descama e se refaz ao longo da vida, impermanente.
"Entendi uma coisa: o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências. O que acontece em Tvaián é que se vive conscientemente em suas ruínas"
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Ciranda de Pedra
"Agarrar-se só ao presente, nua de lembranças como se acabasse de nascer. Via agora que jamais poderia se libertar das suas antigas faces, impossível negá-las porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisa que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, sucessivamente, até chegar à face atual. Mil vezes já tentara romper o fio, mas embora os elos fossem diferentes havia neles uma relação indestrutível. E o fio ia encompridando cada dia que passava, acrescido a cada instante de mais uma parcela de vida. Chegava a senti-lo dando voltas e mais voltas em torno do seu corpo numa sequência sem começo nem fim."
Encontrar palavras que traduzam a riqueza do primeiro romance de Lygia Fagundes Telles, não é fácil, estará sempre aquém da experiência de lê-la.
Escrito no século XX, através dele, a autora nos transporta para outro tempo, no qual os costumes nos remetem a outra realidade social e cultural brasileira.
Nesta narrativa fluída e cheia de camadas, a autora dá vida a Virgínia, pequena garota que se vê enodada nos mistérios de uma parentalidade delirante e distante.
Acompanhar o desenvolvimento de Virgínia reaviva em nós resquícios deste que é um momento marcado por fantasias e dissabores, desconstruindo a imagem de uma infância plena e despreocupada.
Percorremos junto a ela "o mundo que criara dentro de si, mesmo com os pés ancorados". Nos deparamos com o desamparo frente a pulsante e exigente demanda de amor e pertencimento, peculiar ao crescer e adolescer, através dos seus repetitivos esforços e embaraços para entrar na roda e se fazer incluir na ciranda entre suas irmãs, amigos e amores.
Embora tente se despir das roupagens pueris e livrar-se dos pedregulhos emocionais que outrora a despedaçaram, Virgínia dá-se conta de que seus cacos continuam ali, em sua juventude, ainda que recolados, refletindo mil pedaços e palavras da sua infância.
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Admirável Mundo Novo
"Eram forçados a sentir as coisas intensamente. E, sentindo-as intensamente (intensamente e, além disso, em solidão, no isolamento irremediavelmente individual), como poderiam ter estabilidade?"
O clássico de ficção científica, Admirável mundo novo, publicado em 1932 pelo escritor inglês Aldous Huxley, narra a vida em Londres no ano 2540 ou 632 d.F (depois de Ford).
Sua futurologia crítica prevê alguns dilemas, desenvolvimentos tecnológicos e sociais, vividos na contemporaneidade, como a fertilização e a gestação in vitro.
As pessoas não nascem, são gestadas em laboratórios e educadas a partir de condicionamentos hipnopédicos, técnica de sugestão que as divide em castas sociais, que as fazem crer na superioridade de sua posição, de modo a evitar a mobilidade social.
Aborda o culto à felicidade, garantida pelas "pílulas de soma" que sustentam o amor à servidão, aludindo ao adoecimento mental do mundo capitalista e ao consequente processo medicalização que enquadra e cala o sujeito, a fim de mantê-lo dócil e produtivo.
Bernard Marx, entretanto, é um personagem desviante, estranho no ninho daqueles que deveriam ser seus semelhantes. Sua presença na trama representa o irremediável sentimento de culpa e solidão humanos. Bernard tem acesso a uma realidade histórica que preserva a cultura e os costumes de uma sociedade, tal qual a nossa, considerada "arcaica". Os afetos, a complexidade das relações, a heterogeneidade do ser, são assim contrapostas à racionalidade, ao pragmatismo e à homogeneidade das formas de existir.
O romance aborda de modo crítico os "progressos" que sustentam uma sociedade estratificada e altamente estruturada pelo mercado, trata das revoluções tecnológicas e científicas que afetam os seres humanos, com uma boa dose de humor sobre o mal-estar da civilização, que persiste na figura do personagem Bernard, a despeito das políticas disciplinares aplicadas às paixões e às pulsões do homem.
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O acontecimento
"E o verdadeiro objetivo de minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros"
Qual seria o fim de uma escritura, senão dar destino ao Real da existência, diluí-la, simbolizá-la, recriá-la?
Annie Ernaux, escritora francesa, etnóloga de si, Nobel de Literatura em 2022, dá corpo às suas reminiscências juvenis, fazendo, de um acontecimento de sua vida, escrita e, de sua escrita, um acontecimento.
Com o olhar estrangeiro e acurado pelo tempo, neste enxuto e precioso relato autobiográfico, a autora retorna à 1963, margeando com palavras o cerne indizível de sua solitária e clandestina experiência de aborto aos 23 anos.
“Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la (...). E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo.”
A desinterdição do aborto na França, alguns anos depois, assim como tantas outras leis que nascem muito atrasadas, tem o condão de silenciar a angústia daqueles que foram historicamente vitimados, mas não de encerrar a singularidade do acontecimento, que se espraia na vida de cada um como infiltrações.
Essa angústia é o que, décadas mais tarde, coloca Annie em movimento, conduzindo-a ao enfrentamento e à depuração de sua crua experiência enquanto realidade psíquica.
Despida de um senso coletivo é ao mesmo tempo uma escrita política, pois ressoa noutras sociedades leitoras, nas quais a existência de leis que pesam sobre os corpos das mulheres ainda é um ponto indiscutível.
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Laços
"... Há uma distância que conta mais do que os quilômetros e talvez mais até do que os anos-luz: a distância das mudanças"
Quando Vanda e Aldo retornam de uma viagem, deparam-se com rastros do sumiço do gato Labes, uma casa revirada de ponta-cabeça e memórias não apagadas pelo tempo, mas des-botadas de lugar.
Esse é o cenário a partir do qual Laços (2014), do italiano Domenico Starnone, desenvolve-se. Objetos outrora escondidos emergem à cena ajudando a recontar os segredos da família a partir das narrativas do casal e de seus filhos, Sandro e Anna.
As múltiplas leituras desse romance costumam aparecer em diálogo com Dias de Abandono (2002), de Elena Ferrante, guardando estreita conexão em suas tramas, que versam sobre afetos familiares ao desenlace conjugal.
Em ambas as obras, lemos a (con)fusão das narrativas conjugais e parentais. No matrimônio, peças previamente dispostas e movimentos (des)coordenados: a mulher se ocupa dos filhos e da insustentável ordem da casa, enquanto o homem se ocupa do trabalho e de outras mulheres. Juntos, compõem uma maternidade domesticada e uma paternidade lúdica, sustentada por uma forma desajeitada de fazer laço.
"Ambos tínhamos crescido com a ideia de que certo modo de ser fazia parte da ordem natural das coisas. Era natural que nosso casamento durasse até que a morte nos separasse. Era natural que minha mulher não tivesse outro trabalho além do doméstico. E mesmo agora que tudo parecia em transformação – fase pré-revolucionária, se dizia –, não era concebível que as mães pudessem descuidar dos filhos. No entanto, ela estava tocando nessa questão e me perguntava como eu pretendia enfrentá-la. Mais uma vez não soube o que responder."
Na separação, desvelam-se as dores e os controles maternos, assim como a inabilidade e a conveniência paternas, tornando incômodo aquilo que antes funcionava num acordo tácito e culturalmente desigual.
Nesse (con)texto, ninguém é poupado, muito menos aqueles, "em nome dos quais" muitos nós desconfortáveis são suportados.
"Os únicos laços que contam para nossos pais são os que eles usaram a vida inteira para torturar um ao outro."
Ao lidar com os pontos cegos e com os desalinhos do tecido familiar, os filhos são aqueles que muitas vezes destralham os afetos, expondo que a aparente ordem de uma casa, invariavelmente, esconde muitos destroços.
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Dias de abandono
"... talvez tivesse entendido melhor por que ele tinha ido embora e por que eu, que à desordem ocasional do sangue sempre opus a estabilidade da nossa ordem de afetos, agora sentia de forma tão violenta o pesar da perda, uma dor intolerável, a ansiedade de cair para fora da malha de certezas e ter de aprender outra vez a vida sem a segurança de saber fazê-lo"
Elena Ferrante, famosa e enigmática autora italiana, traz neste livro o relato íntimo de Olga, uma mulher que vivencia o luto da dissolução de seu casamento com Mário, tendo como marca o peso do abandono.
Luto não é necessariamente sobre morte, mas sobre um trabalho psíquico desencadeado por perdas, de um objeto, de uma posição, de um ideal, de relacionamento, de família, de carreira, de prestígio, de tudo aquilo que imaginávamos haver apenas uma forma de viver e de conceber algo.
Neste trabalho, Olga empreende sucessivas tentativas de ler Mário, seus gestos, suas frases, as suas razões, os seus motivos. Percurso que evidencia, antes, o próprio abandono de si, de sua voz, de seus afetos, de seus desejos, sempre implodidos. Da implosão de si à erosão do amor, Eros aparece em sua face avassaladora, explodindo a monotonia dos afetos, des-ordenando tudo àquilo que parecia acomodado, certo e previsível, em seu lugar.
“Eu tinha posto de lado as minhas aspirações para acompanhar as suas. Para cada crise de desconforto dele, eu tinha estancado as minhas crises para poder confortá-lo. Eu tinha me perdido nos seus minutos, nas suas horas, para que ele se concentrasse. Eu tinha cuidado da casa, da comida, dos filhos, eu tinha me ocupado de todas as chatices da sobrevivência do cotidiano, enquanto ele escalava teimosamente o declive da nossa origem sem privilégios. E agora, agora ele me largava carregando consigo todo aquele tempo, toda aquela energia, todos aqueles sacrifícios que eu fizera por ele, de uma hora para outra, para gozar os frutos com outra, uma estranha que não tinha mexido um dedo para pari-lo, nutri-lo e fazer com que ele se tornasse o que era.”
Um divórcio causa fraturas, convida ao trabalho de luto e suas elaborações. Trata-se, no campo do amor, de uma reescrita, de uma reinvenção do lugar que se pensava ocupar no desejo do Outro e o lugar que o outro-parceiro ocupava para o sujeito, em sua economia psíquica.
Nesta leitura, acompanhamos a reescrita de Olga, a mulher abandonada entre a esposa de Mário e a mãe de Gianni e Ilaria.
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Pequena coreografia do adeus
" Aos poucos fui percebendo que nenhuma relação que eu estabelecesse no futuro viria sem esta conta da quebra da inocência, quando as pessoas se casam elas não ficam juntas para todo o sempre? então não há segurança com nada e com ninguém?"
A narrativa poética de Aline Bei, premiada escritora brasileira, retrata as nuances afetivas de uma família em separação, sob o ponto de vista de Júlia Terra, filha única, que tenta se refazer entre cacos da desidealização parental.
A escrita insurgente às normas traz a perspectiva de que as famílias e os afetos também o são, circulam subversivos e embaraçados nesse espaço fértil entre silêncios e mal entendidos. De que todo filho é único, ocupa um lugar diferente no desejo do Outro e inventa sua própria ficção a partir deste lugar pendular de onde se ata e se desata continuamente, tentando se re-fazer no mundo. De que as famílias são plurais, podem ser porto, afeto, ancora, abandono, dor, desamparo…
"ao longo dos anos e por trás de cada relação que eu estabelecesse me assombrava a certeza de que as pessoas se abandonam, muitas nem se amam, se casam por medo da solidão e têm filhos pelos mesmos motivos."
O peso da palavra “Abandono” impõe-se sobre os minúsculos movimentos de an-coragem da protagonista, que nos mostra a potência de inscrição da palavra e do afeto em face à violência do ato.
A autora nos presenteia com sua sensibilidade, dando contornos ao que há de Real nos laços familiares, no des-encontro conjugal e parental:
A complexa relação mãe-filha
A separação conjugal e parental
A demissão do pai do seu lugar
As transmissões intergeracionais
A violência intrafamiliar
O encontro com o próprio desejo
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A casa dos budas ditosos
“Atraso, atraso, vivemos segundo regras e padrões para os quais nenhum ser humano foi feito e, claro, ficamos malucos por isso.”
A casa dos budas ditosos, romance do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, é considerado um clássico da literatura erótica brasileira, foi lançado em 1999 como parte de uma coleção, na qual cada livro representava um dos 7 pecados capitais.
Dedicado à luxúria, este volume deriva, segundo o autor, de um relato de experiências sexuais de CLB, uma senhora de 68 anos. Saber o que desse preâmbulo é verídico ou ficção importa menos do que a aproximação que a sua escrita com marcas predominantes da oralidade produz no leitor. Até porque, como também revela João Ubaldo, através da figura de CLB, “é irresistível deixar as pessoas sem saber no que acreditar”.
A moral puritana e religiosa, o machismo, o eruditismo, são postos à mesa, num testemunho debochado, devasso e irreverente narrado em primeira pessoa.
Tantas provocações nos levam, no mínimo, ao interessante exercício de ultrapassar a rigidez das nossas censuras e de destituirmo-nos das certezas (in)visíveis que cultuamos secretamente ou proclamamos aos quatro cantos como representante da verdade, do correto, do justo.
O romance satiriza o freudolacanismo, sem poupá-lo daquilo que parece ser um dos seus calcanhares de Aquiles: o hermetismo intelectual que o torna ininteligível, atraindo vaidosos que se empenham na sua decifração e reprodução, para a infelicidade de analistas e analisandos.
Ao mesmo tempo, reafirma a psicanálise de outros modos. A narrativa do texto, por exemplo, é tramada em cadeias associativas, tecida de recordações que transitam de um tema a outro. Assim como num trajeto perlaborativo, percorrido num processo de análise, a personagem caminha no sentido de questionamento dos imperativos dos ditos e ideais do Outro e expressão das perversões, dos desvios, do desejo.
O pudor, o engessamento, o enquadramento, são colocados à margem, desafiando os leitores, os censores, os vigilantes da moral e dos bons costumes, numa tentativa não poética, mas, ainda assim, insurgente, de libertação da palavra (mal)dita, interditada e aprisionada.
“… as palavras são de fato um mistério, um dia eu escrevo um livro louco, só quero escrever um livro louco, em que as palavras possam detonar, explodir em todos os tipos de significados, provocar todo tipo de reação. Eu queria libertar todas as palavras”
Julia Torres