ABANDONO AFETIVO
"Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam.
Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo.
O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. [...] Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo"
Manoel de Barros
Estudos sobre abandono afetivo, caracterizam-no como um distanciamento ou ausência amorosa dos pais no convívio com os filhos, por motivos conscientes ou inconscientes, ainda que as obrigações alimentícias sejam cumpridas (Braga e Fuks,2013).
Essa configuração, que tem motivado judicializazões de indenização pelos danos psicossociais causados, costuma ser frequente: após dissolução de uniões; quando o filho é concebido fora do casamento; quando o pai desconhece a sua existência; quando a mãe ou o pai prefere ou não consegue adotá-la afetivamente.
É essencial lembrarmo-nos que, enquanto, de um lado, ações judiciais de alienação parental pesam majoritariamente sobre mulheres, do outro, as ações de abandono afetivo recaem sobre os homens. Isto possui íntima relação com os modos seculares de divisão sexual do trabalho, na família burguesa, ocidental. Nesse cenário, as mulheres estavam limitadas ao espaço privado, ao cuidado do lar e dos filhos, enquanto os homens circulavam no espaço público, incumbidos de prover materialmente a família, restando, por outro lado, inábeis, em sua maioria, à expressão dos afetos e à intimidade junto à prole. Revisitar o passado, permite evidenciar o histórico emprego das mulheres na função do cuidar, sendo facultado aos homens o exercício do papel parental.
Do ponto de vista psicanalítico, podemos dizer que o ser humano nasce em desamparo, dependente dos cuidados de uma rede de pessoas que lhe ofertem, além de leite e pão, palavras, e que a parentalidade se institui sempre através do desejo, de uma adoção afetiva, tanto dos pais quanto da criança, já que a relação biológica, por si, não garante vínculo afetivo e filiação simbólica. Na prática, muitas vezes o papel e a função parental são exercidos por terceiros da família ampliada ou da comunidade, que abrigam as ruínas do abandono socioafetivo, com uma tapera de amor. Essa "indenização" não tem preço.
Julia Torres
Referências de Leitura:
Braga, Julio Cezar de Oliveira, & Fuks, Betty Bernardo. (2013). Indenização por abandono afetivo: a judicialização do afeto. Tempo psicanalitico, 45(2), 303-321.